Um francês naturalizado, nascido na zona rural da Argélia, está para se tornar o rei do varejo no Brasil.
Sexta-feira, Jean-Charles Naouri deve assumir o controle da rede Pão de Açúcar, a maior do país, como prêmio por sua estratégia de tudo ou nada que o alçou ao mais alto escalão do mundo dos supermercados.
A ascensão de Naouri é um emblema de como o reservado dono e diretor-presidente do grupo varejista francês Groupe Casino SA tirou vantagem do fato de ser estranho ao setor, pondo sua companhia na invejável posição de líder em alguns mercados emergentes numa época de estagnação na França.
Naouri é uma raridade no varejo, porque ele não vem de uma dinastia de empresários do ramo, como a família Diniz, do Pão de Açúcar, ou os Waltons, que fundaram a rede americana Wal-Mart Stores Inc., ou mesmo o clã Halley, que há muito controla a concorrente francesa Carrefour SA. O líder da Casino construiu seu império comprando fatias minoritárias de empresas em dificuldades, e depois se armando com advogados e contratos.
Não ter um histórico de varejo "muitas vezes é usado como um argumento pejorativo para me desacreditar [...] para mostrar que sou ilegítimo", disse Naouri ao The Wall Street Journal. "Em cada briga, há uma tentativa de trazer isso à tona."
Por causa da estratégia de Naouri, a Casino está entre as varejistas mais lucrativas da Europa, com base em suas margens operacionais - e a lista de inimigos de Naouri é longa. O patriarca da Companhia Brasileira de Distribuição SA, a dona do Pão de Açúcar, Abilio Diniz, é um dos mais recentes. Os dois vinham colaborando entre si desde 1999, mas no ano passado entraram em rota de colisão quando Diniz tentou armar uma fusão com a Carrefour.
Este mês, Diniz terá de cumprir um acordo pelo qual será obrigado a transferir a presidência da holding que controla o Pão de Açúcar para Naouri pelo valor simbólico de R$ 1, passando assim a ser um dos maiores empregadores privados do Brasil. No ano que vem, o Brasil vai responder por 41% do faturamento da Groupe Casino, previsto em 54 bilhões de euros, enquanto 40% virá da França, segundo o analista do Santander Jaime Vázquez.
"Ele entra em companhias familiares e explora a discórdia delas", diz Dorothée de Bernis, uma advogada que representa a família Baud, a qual tem brigado com a Casino na Justiça há vários anos. "Ele não é um gênio do varejo, ele só é muito bom em finanças."
Naouri, de 63 anos, entrou no varejo depois de dominar outras searas. Nascido na Argélia, ele se mudou para a França com sua mãe quando tinha 6 anos. Ele já lia os clássicos gregos e latinos na língua original quando tinha 10 anos e completou os exames do ensino médio aos 15. Ele ganhou uma bolsa para estudar economia na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, durante dois anos e obteve nota máxima no exame de ingresso na faculdade de direito, antes de voltar para a França e se formar na ENA, a escola de elite de administração de empresas.
O sucesso profissional veio antes da riqueza. Nos anos 80, Naouri entrou na política como chefe de gabinete do ministro da Fazenda da França. Ele morava com seu filho num estúdio em Paris e tinha uma TV em preto e branco. Depois do fim do governo socialista em 1986, Naouri passou para o setor privado, indo trabalhar na consultoria financeira Rothschild. E em paralelo abriu um fundo de investimento, o Euris.
Pessoas próximas de Naouri o descrevem como um trabalhador obsessivo. Ele não toma parte de várias das associações empresariais da elite empresarial da França, e seu maior hobby é jardinagem.
Através do Euris, Naouri pôs um pé na Casino. Ele adquiriu uma participação minoritária junto com a família fundadora, e a converteu para uma fatia majoritária em 1998, depois de uma tentativa de compra hostil feita pela cadeia rival Promodès. Nos anos seguintes, ele comprou pequenas fatias em companhias em dificuldades. Ele também entrou na rede de supermercados Franprix e na de lojas de descontos Leader Price, criada décadas antes pelos Bauds, que ficaram com uma participação minoritária.
Mas todas essas aquisições deixaram a Casino muito endividada e tropeçando em vários mercados emergentes. Em 2005, Naouri demitiu o diretor-presidente Pierre Bouchut e assumiu o cargo, vendendo operações e redobrando investimentos como o do Pão de Açúcar. Ele também renegociou os termos de seu acordo com Diniz: em 2012, a Casino assumiria o controle majoritário da rede brasileira.
Dois anos atrás, Diniz começou a dar sinais de que tinha mudado de ideia, segundo pessoas próximas da situação. Naouri diz que ele estava aberto a negociar, mas o contrato entre os dois sócios tinha de ser cumprido. Um ano atrás, Diniz revelou seu plano: fundir o Pão de Açúcar com o Carrefour, o que deixaria a Casino com uma fatia minoritária.
Indignado, Naouri conseguiu contra-atacar para defender sua joia brasileira. Com um exército de advogados nos dois lados do Atlântico, ele pediu arbitragem da Câmara Internacional de Comércio para o que a Casino chamou de quebra de seu acordo de acionista com Diniz. Na França, Naouri fez lobby nos tribunais para confiscar documentos da sede da Carrefour que revelavam contatos com seu sócio brasileiro.
Quando Diniz apareceu na sede da Casino pedindo para ver Naouri, foi barrado. "Eu estava sendo usado. Não fui procurar briga", diz Naouri no sétimo andar da sede da Casino em Paris, com vista para Les Invalides, onde Napoleão foi enterrado. "A batalha brasileira é passional, titânica, extraordinária."
Por meio de uma porta-voz, Diniz disse que continua a ser o segundo maior acionista do Pão de Açúcar e que vai "continuar ativo, sempre buscando o melhor para a companhia que meu pai criou."
Naouri parece ter a última palavra. No mês passado, ele tirou Diniz do conselho da Casino. "Quando eu era pequeno, meu pai sempre me dizia", diz seu filho, Gabriel Naouri, que administra os hipermercados Casino no norte da França e vai ser promovido nas próximas semanas para um posto mais alto na diretoria, num processo que muitos acreditam que o vai levar a substituir seu pai um dia: "'Quando você quer, você pode'".
América Latina está na mira da Casino
Nos últimos quinze anos, as maiores empresas de varejo do mundo brigaram para conseguir um lugar de destaque no Brasil. Agora, a francesa Groupe Casino SA está prestes a deixar todas comendo poeira.
Na próxima sexta-feira, a Casino deve assumir o controle da rede Pão de Açúcar. Com isso, vai cimentar a posição de líder em um dos mercados emergentes que mais crescem no mundo, à frente de rivais multinacionais como a Wal-Mart Stores Inc. e a Carrefour SA. E Jean-Charles Naouri, presidente da Casino, já volta os olhos para outras paragens com a ideia de dar continuidade à expansão do grupo na América Latina.
O renovado interesse de grandes varejistas no Brasil é prova do apelo do país como um mercado com alto potencial, em um momento em que economias da Europa chafurdam na crise da dívida soberana e a recuperação dos Estados Unidos não consegue ganhar força.
Segundo estimativas do centro de estudos IGD, especializado no setor supermercadista, o mercado brasileiro, um dos maiores do mundo, vai crescer 35% entre 2011 e 2015, de US$ 341 bilhões para US$ 462 bilhões. No mesmo período, o movimento em supermercados americanos deve subir a cerca de metade do ritmo, chegando a vendas de US$ 1 trilhão em 2015, segundo o IGD.
Para Casino, Wal-Mart e Carrefour, o investimento no Brasil lá atrás significou o acesso a uma crescente classe média, que incorporou mais de 31 milhões de pessoas nos últimos dez anos. Pão de Açúcar, Wal-Mart e Carrefour respondem, juntas, por cerca de 58% do mercado supermercadista brasileiro, segundo dados da Associação Brasileira de Supermercados.
O brasileiro está comprando carros como nunca, tornando grandes shoppings centers e hipermercados um destino altamente popular. E, além disso, essa reunião de lojas sob um mesmo teto tem forte apelo no quesito segurança - sobretudo num país no qual a criminalidade continua sendo um problema.
Embora a classe média brasileira ainda seja concentrada em torno de grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, o crescimento do país aos poucos irradia desses centros urbanos para outras regiões.
As três maiores redes varejistas do Brasil estão fechando o cerco sobre o Nordeste "para tirar o máximo do crescimento da renda em zonas relativamente pobres", diz Ira Kalish, diretor de economia global da Deloitte Research, parte da Deloitte Services LP.
"Cinco anos atrás, ninguém construiria um hipermercado numa cidade com menos de 500.000 habitantes", disse Hugo Bethlem, diretor de assuntos corporativos da Pão de Açúcar, numa entrevista para o The Wall Street Journal este ano. "Hoje, com a ascensão de classe social e do poder aquisitivo de tantos brasileiros, já é viável um hipermercado numa cidade de 150.000 habitantes".
Agora, a Casino quer ampliar o sucesso registrado no Brasil com a entrada em novos mercados no continente. A ideia é usar o braço colombiano, a Almacenes Éxito SA, como base regional.
"A nosso ver, no sul do México há muitos países interessantes", diz Naouri. "Não vamos dar nomes específicos pois no momento ainda estamos buscando, mas a Éxito tem US$ 1 bilhão em caixa [...] dinheiro que será aplicado para comprar algo", diz ele.
Veículo: Valor Econômico