Pesquisa do Château Margaux mostra que o material "saudável" ainda garante a melhor vedação.
É sempre constrangedor recusar garrafa de vinho em restaurantes, alegando que ele "não está bom". A atitude pode ser vista como implicação do cliente, demonstração de poder ou tentativa de se mostrar um expert (conhecidos como "enochatos"). O assunto é delicado e requer educação e bom senso, em especial porque não são raros os casos de clientes inexperientes que confundem vinho estragado com o que não lhes agrada - assim como há aqueles que bebem os vinhos comprometidos sem nem perceberem. Embora a casa tenha a obrigação de servir o produto sem nenhum defeito, e trocá-lo se isso acontecer, nem sempre o profissional encarregado do serviço tem conhecimento e discernimento para confirmar que a garrafa está com problema. Espera-se ao menos que alguém no restaurante tenha.
Deixando de lado questões ligadas à conservação - não é necessariamente por culpa do restaurante, isso pode ter ocorrido antes da compra -, o que resultaria numa bebida em fase de declínio, com sinais de oxidação, ou a um defeito de vedação específico daquela garrafa, a expectativa é com relação ao defeito conhecido como "doença da rolha", "bouchonné", ou "corked" (derivação de bouchon e cork, traduções de rolha em francês e inglês, respectivamente). Caracteriza-se por um odor desagradável que lembra bolor ou pano molhado, identificável também na boca pelo gosto desagradável.
Deve-se basicamente a um fungo, o composto 2,4,6-Trichloroanisole, ou TCA, que ataca a cortiça, matéria-prima da rolha, indo se manifestar mais tarde quando ela está em contato com o líquido, contaminando-o. O fato de ser imperceptível à vista antes de ser engarrafado (e mesmo depois de a garrafa ser aberta) faz com que vinhos de ótima reputação estejam sujeitos ao problema. Vale ressaltar que, na maioria das vezes, a culpa não é do produtor, nem se estende ao lote, mas àquela garrafa especificamente. Nada impede de solicitar outro exemplar do mesmo vinho em seguida. As vinícolas, em todo caso, principalmente as que têm rótulos prestigiados e caros em sua gama, se cercam de cuidados maiores, comprando de fornecedores mais qualificados e realizando testes estatísticos em lotes de rolhas recebidas, antes de utilizá-las.
A cortiça é a própria casca do sobreiro, uma árvore cientificamente conhecida como Quercus Suber L, muito abundante em Portugal - o maior produtor mundial - e Espanha e é extraída de nove em nove anos. A estatística de rolhas contaminadas é pouco precisa, mas estima-se que esteja entre 2 e 5%. A incidência vem diminuindo na medida em que uma série de precauções tem sido tomada em todo o processo, entre elas maior cuidado na extração da cortiça, seu tratamento, e armazenamento adequado.
A bem da verdade, tais controles só foram adotados após a crise de abastecimento do setor, ocorrido sobretudo na década de 90, quando a demanda cresceu muito e os corticeiros, na ânsia de atender os pedidos, baixaram o padrão de qualidade. Com o aumento da incidência de problemas, começaram a surgir soluções alternativas para vedar as garrafas. Num primeiro momento apareceram as rolhas sintéticas. Embora estivessem livres da contaminação pelo fungo, elas foram e ainda são bastante criticadas devido à dificuldade de sacá-las da garrafa - de recolocá-las também -, além de não serem aconselháveis para vinhos a serem consumidos após dois ou três anos do engarrafamento.
Sem tantos inconvenientes, as tampas de vidro, envolvidas com material plástico, uma espécie de silicone, para evitar o contato direto com a garrafa e permitir boa vedação, têm sido adotadas por vinícolas alemãs, mesmo as de renome, para vinhos brancos da gama média.
A mais forte concorrente das tradicionais rolhas de cortiça é a chamada screw cap, que nada mais é do que a comum tampa metálica de rosca, utilizada em pequenas garrafas servidas em aviões e em certas cervejas. Sua aceitação começou curiosamente num mercado bastante conservador, a Inglaterra, e contou com o poder que os supermercados locais detêm no comércio de vinhos do país e o apoio de produtores australianos e neozelandeses, que há um bom tempo vêm aderindo à inovação. Atualmente, inclusive, as vinícolas da Nova Zelândia preferem não exportar a dar opção de rolha de cortiça.
Por mais que as tampas de roscas metálicas agridam as mais antigas tradições que envolvem o cerimonial do vinho e irritem os conservadores, não há como negar que elas têm argumentos convincentes. São fáceis de abrir e de fechar e vedam perfeitamente as garrafas, impedindo o nefasto contato da bebida com o oxigênio. Há ainda, a favor, o fato de conservarem o vinho com o frescor e juventude de quando foi engarrafado. Se isso é uma grande virtude quando se fala de vinhos brancos, o mesmo não se pode afirmar com relação aos tintos, que têm como característica a necessidade de passar um bom tempo na garrafa para se desenvolver e, para tanto, supostamente precisam "respirar".
Como tudo que diz respeito a vinho, as respostas não são imediatas e não basta colocar os dados no computador e dar um "enter". É preciso experimentar e ir analisando os resultados. Foi o que fez Paul Pontallier, diretor técnico e mentor do celebrado Château Margaux. Ele vem esporadicamente engarrafando, desde 2004, um certo número de garrafas de três de seus vinhos com os diversos tipos de vedação com o intuito de compará-los de tempos em tempos para acompanhar como evoluem. Quando lhe perguntei há alguns meses sobre o que tinha observado até então, disse que só havia feito a prova uma vez e que estava na hora de repetir a experiência, me convidando para participar durante minha estadia em Bordeaux em função da Vinexpo, realizada agora em junho.
Reunido o comitê, Marie Descôtis, responsável pela área de estudos e pesquisas do Château Margaux, Philippe Berrier, o maître du chai, que responde pelos trabalhos na adega durante todo o ano, Philippe Bascaules, enólogo chefe, e o próprio Pontallier, a primeira bateria teve quatro garrafas do vinho genérico (o "terceiro" vinho, que sobra da seleção do rótulo principal e do Pavillon Rouge e não é comercializado) da safra 2003, engarrafadas em 2004 e vedadas com rolhas de cortiça, sintética e dois tipos de tampa de rosca, uma que tem parte de revestimento interno e um disco no fundo em silicone, garantindo total estanqueidade, e outra apenas com um selo em material plástico ao fundo que permite ao vinho "respirar".
Degustadas às cegas, coletadas as opiniões de nós cinco e computados os votos, houve consenso que havia nítida diferença entre elas e, unanimemente, a pior amostra foi a letra "A", de rolha sintética. O vinho estava mais evoluído, com aroma animal e mais austero. A mais sedutora e com maior votação foi a "B", que, descobertas as garrafas, se referia à tampa de rosca não estanque. Provando que é importante tentar outras possibilidades - comentário enfático de Pontallier -, a amostra "D" apresentou "algum defeito" - era a de rolha de cortiça, cujo defeito ficou mais acentuado com o passar do tempo. Outra garrafa, buscada depois, se mostrou perfeita, revelando com mais precisão a tipicidade do vinho.
O mesmo aconteceu na série seguinte, com o Pavillon Rouge 2002, engarrafado em 2004: a pior (de longe) foi a com rolha sintética e a melhor, com o vinho demonstrando classe e bela evolução, a de cortiça.
A última bateria foi reservada ao Pavillon Blanc 2004, engarrafado em junho do ano seguinte. Nesta, novamente ficou confirmada a inadequação da rolha sintética, deixando agradável surpresa o bom resultado da garrafa com tampa de rosca não estanque. O vinho estava vivo, com bom frescor e também expressivo, algo tão nítido para Pontallier que ele até se prestou a analisar seriamente a questão e colocar esta opção no mercado, ao menos os que se interessarem. A sintética, por outro lado, está definitivamente condenada.
No embalo, Paul Pontallier confidenciou estar adotando um grau de exigência cada vez maior para seus rótulos. A seleção das uvas está tão rigorosa que, a despeito da safra 2010 ter sido excepcional, apenas 36% da produção foi utilizada para elaborar seu topo de gama, o Château Margaux, e apenas outros 36% no Pavillon Rouge. Isso implica que está sobrando uma quantidade significativa para o "genérico", que não era comercializado, o que é um desperdício. Em breve ele passará por mais uma triagem e será colocado no mercado como terceiro rótulo. Algo semelhante será aplicado ao vinho branco. Vem aí o Château Margaux Blanc, e o Pavillon Blanc vai virar segundo.
Veículo: Valor Econômico