A Kirin comprou a cervejaria brasileira no escuro, sem uma auditoria financeira completa. Agora, contratou a Deloitte para saber se as contas da empresa estão saudáveis.
No mundo dos negócios, o primeiro passo em qualquer aquisição é uma varredura nas contas da empresa-alvo para evitar surpresas desagradáveis decorrentes de processos judiciais ou problemas financeiros depois de fechada a transação. Os japoneses da Kirin inverteram essa lógica. Só agora, após desembolsar R$ 6,5 bilhões por 100% da paulista Schincariol, eles vão mergulhar, de fato, nas contas da cervejaria brasileira. Para submeter a um pente fino os números de uma das mais complicadas e heterodoxas empresas brasileiras, eles contrataram a consultoria britânica Deloitte, que teve sua credibilidade arranhada por deixar passar um rombo de R$ 4,3 bilhões no Banco PanAmericano, do grupo Silvio Santos, em novembro de 2010. Será a Deloitte a responsável por fazer a varredura nas contas da companhia. E os primeiros resultados indicam que os japoneses correm o risco de ter uma boa ressaca. Segundo DINHEIRO apurou, apenas a dívida tributária da Schincariol, conhecida por não ser exatamente uma devota de São Mateus, o padroeiro dos contadores, gira em torno de R$ 4 bilhões. Além disso, a Schincariol ainda está sendo investigada pela suspeita de sonegar R$ 1 bilhão, evasão de divisas, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. As acusações datam de 2005, época na qual foi realizada a Operação Cevada encabeçada pela Polícia Federal e a Receita Federal.
Tanto os executivos da Schincariol quanto os da Kirin só vão se pronunciar oficialmente em janeiro, quando o empresário Adriano Schincariol deixar o cargo de presidente para se transformar em consultor da Kirin, por um período de nove meses. Por enquanto, as atenções estão voltadas para a auditoria das contas. Paralelamente, potenciais candidatos a ocupar a cadeira de presidente da Schincariol já passam por entrevistas com um headhunter contratado pelos japoneses. A decisão deve sair ainda neste ano. “O ideal é que seja alguém com conhecimento do mercado local”, diz uma fonte envolvida na transição. “A diferença cultural pode atrapalhar no andamento dos negócios.” Apesar de não ter feito uma avaliação detalhada das contas da Schincariol, a Kirin estabeleceu uma cláusula de indenização de R$ 1 bilhão que os ex-herdeiros devem pagar. Adriano e seu irmão Alexandre Schincariol, que detinham 50,5% por meio da extinta holding Aleadri e venderam suas participações por R$ 4 bilhões, deverão arcar com R$ 800 milhões, caso seja descoberto algum problema fiscal ou trabalhista no período anterior à entrada dos japoneses.
Seus primos, Gilberto, Daniela e José Augusto, os minoritários abrigados em outra holding, a Jadangil, são responsáveis pelos outros R$ 200 milhões. Do ponto de vista jurídico, uma avaliação mais detalhada também começa a ser feita. “Estamos analisando todos os documentos e contratos para ajudar a Kirin a entender a empresa”, diz Pedro Seraphim, advogado do escritório paulista TozziniFreire, que assessora os japoneses. Por que os japoneses topariam entrar às cegas em um negócio, com o risco de ver seu investimento virar espuma? Uma das respostas é a boa estrutura construída ao longo de 72 anos pelos ex-controladores da Schincariol. Nesse período, eles ergueram uma verdadeira potência do setor, composta por 205 centros de distribuição, dos quais dez são próprios, e 12 fábricas espalhadas em 11 Estados. Isso garante-lhes acesso a 600 mil pontos de venda. Mesmo assim, a disputa judicial deflagrada inicialmente pelo grupo liderado por Gilberto Schincariol Júnior, ex-diretor comercial da empresa, para evitar a venda para a Kirin parece ter tido efeito sobre o desempenho da Schincariol.
Em setembro, a cervejaria de Itu perdeu a vice-liderança do setor para a carioca Petrópolis, dona das marcas Itaipava e Crystal, segundo dados da consultoria americana Nielsen (leia gráfico abaixo). No acumulado julho-setembro, a Schincariol também foi a única que viu sua participação de mercado cair. Caberá à Kirin revitalizar a Schincariol. Dinheiro e disposição não devem faltar aos seus executivos. Até aqui, eles travaram várias batalhas para ficar com a companhia brasileira. A primeira delas foi com as concorrentes globais: as britânicas SABMiller e Diageo, a holandesa Heineken e a dinamarquesa Carlsberg. Todas elas estavam interessadas em ficar com a Schincariol. No processo comandado pelo BTG Pactual, SABMiller e Heineken ofereceram R$ 3,2 bilhões e R$ 3,3 bilhões, respectivamente. A Kirin não apenas topou pagar mais (R$ 4 bilhões) como não impôs, de imediato, a necessidade de analisar previamente as contas da empresa da família Schincariol. Os japoneses tampouco ligaram para a possibilidade de os minoritários contestarem o negócio. Como de fato aconteceu. A briga retardou a conclusão da operação em três meses. Agora, com negócio fechado, chegou a hora de arregaçar as mangas.
Veículo: Revista Isto É Dinheiro