Após doze anos de esforços diplomáticos, oito dos quais sob o governo de Luis Inácio Lula da Silva, os Estados Unidos vão aproveitar a visita da presidente Dilma Rousseff a Washington para oficializar o reconhecimento da cachaça como bebida genuinamente brasileira, deixando de tratar a bebida como apenas mais um tipo de rum. Será assinado um compromisso bilateral, em que a cachaça passa a ser considerada um "distinctive national product" (produto nacional característico) do Brasil e, em contrapartida, os brasileiros passarão a tratar o uísque de milho como produto exclusivamente americano.
Vicente Bastos Ribeiro, produtor da Nêga Fulô e presidente da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cachaça, fórum consultivo ligado ao Ministério da Agricultura, teme que a pinga "vire um genérico, como a vodca." Ele observa que "os produtores de vodca russa perderam o controle de fabricação, e hoje a vodca é feita em todos os países. É o que queremos evitar. Esse é o ponto essencial da viagem da Dilma: para ser cachaça, o produto terá que vir do Brasil".
Quando assinado, o tratado passa a reconhecer a cachaça como produto nacional - produzido exclusivamente no Brasil -, assim como são o champanhe e o conhaque (feitos apenas na França); e a tequila (no México). A "origem brasileira" garante que apenas o que for produzido aqui pode ser considerado cachaça, e isso agrega valor ao produto.
Acessar o mercado americano é "estratégico" para a Santa Dose, marca premium de cachaça. A empresa exporta para a Europa e contratou uma consultoria nos EUA para elaborar um plano de negócios. Um dos passos foi alterar a embalagem, de 750 ml para 900 ml. "O principal mercado de destilados [no mundo] são os EUA", diz Bruno Siqueira, sócio da marca.
O acordo a ser assinado entre Dilma e Obama também pode levar a uma redução na tarifa de importação sobre a cachaça e permitir a criação de um código tarifário próprio para a bebida. Hoje a cachaça é tarifada como "rum e derivados", e os americanos protegem o rum produzido em seus territórios no Caribe (Porto Rico e Ilhas Virgens). Por não fazerem concorrência com o que é fabricado dentro dos EUA, as bebidas reconhecidas pela origem - como o champanhe francês - conseguem alguns descontos tributários. "Os impostos para quem importa [cachaça nos EUA] não passam de 7% do custo do produto", diz Siqueira, da Santa Dose.
Ter a origem reconhecida pelos EUA sinaliza uma possível abertura a outros países, diz Ribeiro, da Câmara Setorial, e isso pode impulsionar as exportações, que engatinham. "O que está em jogo é a questão de ganhar mercado", diz.
O Brasil produz por volta de 1 bilhão de litros de cachaça ao ano, sendo que apenas 1% é exportado (ver tabela).
Para a diretora de comércio exterior da Pitú, Maria das Vitórias Cavalcanti, a atual classificação internacional da cachaça prejudica o setor. "O pior é que não somos classificados como rum, mas sim como 'um tipo de rum' brasileiro, o que dá um 'downgrade' ao nosso produto e em relação ao próprio rum". A Pitú é uma das maiores exportadoras do país. Produziu 94,4 milhões de litros em 2011, dos quais exportou 2 milhões.
Os empresários dizem que entrar nos EUA é difícil porque exige um alto nível de investimentos em marketing. Além disso, os americanos não têm o hábito de tomar caipirinha, então é preciso "educar" o consumidor.
Os problemas esbarram também em questões operacionais. Antes de contratar a consultoria, a Santa Dose encontrou um importador, mas descobriu que precisaria de um distribuidor porque a importadora não estava autorizada a fazer a logística. "No Brasil é muito mais fácil, quem importa também distribui", diz Siqueira.
"E o FDA [agência que regulamenta alimentos e medicamentos] é a segunda barreira. Eles precisam entender todo o processo de concepção do produto, são muito rígidos com alimentos e bebidas", diz o empresário. A Santa Dose conseguiu passar pelo FDA, registrou a marca e agora negocia com importadores.
"Os EUA têm regulações muito fortes em relação a tabaco e álcool. São diversos protocolos; quem importa tem que passar por um crivo muito forte", diz Michelle Tchernobilsky, gerente de relações governamentais da Amcham (Câmara Americana de Comércio). "O FDA tem restrições com todas as bebidas, não apenas à cachaça."
Veículo: Valor Econômico