Por causa da falta da cana, que não resiste à escassez de chuvas, queda na produção artesanal pode chegar a 40%
Neste ano, até a dose de pinga oferecida para o santo vai ficar comprometida. São Pedro não está ajudando e a seca que castiga o Norte de Minas, considerada uma das piores da história, prejudica a produção de um dos mais conhecidos produtos mineiros: a cachaça artesanal. As perdas no setor podem chegar a 40% na região, segundo cálculos de Nivaldo Gonçalves das Neves, presidente da Associação dos Produtores de Cachaça Artesanal de Salinas (Apacs). Com a escassez de chuvas, o crescimento da cana ficou comprometido. Também falta água para movimentar os alambiques. Diante dessas dificuldades, alguns produtores não estão produzindo a bebida neste ano.
De acordo com o presidente da Apacs, a produção anual de cachaça de Salinas é de 5 milhões de litros. Porém, com os efeitos da estiagem prolongada, o volume produzido na região deverá cair para 3 milhões de litros, ou, no máximo, chegar a 3,5 milhões de litros em 2012. A produção da aguardente propriamente dita – alambicagem ou moagem na linguagem dos pequenos produtores – começou em junho e vai até outubro.
O baque provocado pela estiagem prolongada chega numa época em que os produtores de cachaça ainda comemoram uma importante conquista: o reconhecimento da qualidade do produto com o selo de indicação geográfica, concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) em meados de julho.
A Apacs tem 26 associados, que juntos somam 52 marcas de cachaça, entre elas, algumas das mais conhecidas no país, como Havana, Canarinha, Beija Flor, Lua Cheia, Boazinha, Saliboa, Sabor de Minas e Seleta. Conforme Nivaldo Gonçalves, os canaviais ocupam cerca de 600 hectares na região de Salinas. A estimativa é de que, em condições normais de chuva, a produção seja de 9 mil litros de aguardente por hectare.
O presidente da Apacs ressalta que a seca acarreta maiores prejuízos para os pequenos produtores de cachaça artesanal de Salinas, uma vez que o plantio de cana na região não é irrigado. “Além disso, a cana depende muito da regularidade das chuvas, pois o sistema radicular da planta é curto. Atinge, em média, um metro de profundidade. Por isso, a cana sofre muito com a seca prolongada, que retira a umidade da superfície do solo”, explica.
Nivaldo lembra que os fabricantes da cachaça artesanal de Salinas também são produtores rurais comuns e desenvolvem outras atividades em suas propriedades como a criação de gado e o plantio de pequenas lavouras. Por isso, acabam sofrendo outros impactos negativos decorrentes da estiagem prolongada.
Outro problema: vários produtores de cachaça adquirem a cana das mãos de pequenos agricultores de Salinas e municípios vizinhos como Taiobeiras, Rio Pardo, Fruta de Leite e Indaiabira. Por causa da escassez de chuvas, as pastagens foram dizimadas e os sitiantes e fazendeiros foram obrigados a destinar a cana para alimentar o gado, deixando de fornecer para os alambiques.
Normalmente, toda vez que há a queda na produção de determinado produto devido a efeitos da natureza, ocorre um aumento de preços, em função da lei da oferta e da procura. No entanto, no caso da aguardente de Salinas, pelo menos por enquanto, não deverá ter alteração nos valores de venda. O presidente da Apacs esclarece que a aguardente artesanal não chega ao mercado no mesmo período em que é produzida. Logo depois de terminar a destilação, os produtores iniciam o processo de envelhecimento em dornas de madeira, que demora cerca de três anos.
Ainda por conta do processo de envelhecimento, os pequenos produtores de Salinas têm dornas de cachaça estocadas. “Assim, acredito que só deverá ocorrer alguma mudança no preço do produto devido à queda na produção em decorrência da seca, na entressafra, que vai de novembro a maio”, afirma Nivaldo Gonçalves.
Sol não poupa ninguém
A seca afeta duramente a vida dos produtores de cachaça de Salinas, como Eilton Santiago, dono da Canarinha, eleita recentemente em concurso como a segunda melhor aguardente do Brasil – o primeiro lugar ficou com a Havana. “A minha produção neste ano caiu 40%”, diz Eilton, que é sobrinho do falecido Anísio Santiago, fundador da Havana. Ele deverá produzir, no máximo, 20 mil litros da bebida.
Eilton fez um canavial de nove hectares em uma fazenda, perto do distrito de Nova Matrona. Ali são visíveis os efeitos destruidores do sol forte: boa parte da cana não cresceu, ficando fina e com os gomos pequenos. Com isso, a produção do caldo de cana (matéria-prima básica da aguardente) é muito reduzida. Ainda na mesma propriedade, Eilton caminha numa área com o chão esturricado, onde antes existia um reservatório de água. “Em 21 anos, é a primeira que esse tanque seca”, relata o pequeno produtor, que, por conta da falta de água, foi obrigado a deslocar 70 cabeças de gado para uma fazenda vizinha. O dono da Canarinha tem pelo menos um consolo: não houve perda de qualidade da aguardente, tendo em vista que o brix (teor de açúcar) do caldo de cana não sofreu nenhuma alteração.
Para o produtor Ailton Fernandes Alves, dono da Meia Lua, também de Salinas, os prejuízos acarretados pela seca foram piores ainda. “Não tive nem como produzir nada neste ano, pois a cana não cresceu e falta água”, reclama Ailton, revelando que deixou de alambicar 30 mil litros de aguardente. O fabricante da Meia Lua tem dois hectares de cana plantados e grande parte da matéria-prima usada em seu alambique é adquirida de outros pequenos produtores. Mesmo comprando a cana de terceiros, não teve como movimentar o alambique por causa da falta de água.
Ailton, que também responde pelo rótulo Beleza de Minas, conta que o Rio Jucurutu, que passa no fundo de sua propriedade, está esturricado. “Nos anos anteriores, o rio também estava ‘cortado’, mas existiam uns poços no seu leito, de onde a gente tirava a água. Agora, a estiagem foi tão brava que os poços também secaram.” Ele diz ainda que não tem como recorrer a um poço tubular porque a água do lençol freático da região é salobra e não serve para a produção de cachaça. Sem o recurso hídrico, a produção de aguardente torna-se inviável. Ailton explica que para produzir 300 litros da bebida, são necessários 10 mil litros de água, levando em conta o tipo de alambique de sua propriedade, o trompa de elefante, mais popular na região de Salinas.
As dificuldades impostas pela seca vividas por Ailton são igualmente enfrentadas pelo pai dele, João Fernandes Sobrinho, de 83 anos, produtor da Lua Cheia. Seu João vai deixar de produzir 20 mil litros de aguardente este ano, pois também depende da água do Jucuturu, que atravessa sua propriedade. “Por causa do sol forte, a cana murchou toda”, lamenta. (LR)
Veículo: O Estado de Minas