Sonia Collin, uma das maiores especialistas do mundo em química da cerveja, passou a vida mexendo com receitas, dando consultoria a muita gente, de pequenas cervejarias familiares à gigante Anheuser-Busch InBev NV.
Agora trabalhando em um laboratório na Bélgica, centro de especialização em cervejaria onde monges trapistas há séculos fermentam cervejas complexas, Collin está tentando realizar o sonho do setor: elaborar excelentes cervejas que conservem o sabor por muito tempo, para que possam ser despachadas, armazenadas e vendidas no mundo todo sem estragar.
Com ajuda de uma verba governamental de US$ 1,7 milhão, uma equipe chefiada por Collin busca desenvolver novas técnicas para prolongar a vida de prateleira das cervejas artesanais, que se deterioram facilmente. O trabalho de Collin, que futuramente será publicado, será observado de perto pelas cervejarias do mundo todo.
"A cerveja é pão líquido", diz Matt Brynildson, que administra a cervejaria Firestone Walker Brewing nos Estados Unidos. "Não é um produto blindado. Tal como ou o leite ou o queijo, ela se deteriora rapidamente."
A duração na prateleira é um fator crítico para se poder despachar qualquer comida ou bebida processada da fábrica para outras regiões, lição já aprendida por muitas empresas, desde a Nestlé Inc. e a Coca-Cola Co. até produtores de queijo na França e de presunto na Itália. Séculos atrás, a técnica de salgar os alimentos deu vida à grande indústria da pesca do bacalhau no Atlântico. Os exércitos de Napoleão foram os primeiros a ferver e enlatar verduras para suas longas marchas, segundo especialistas em história dos alimentos.
No fim do século XIX, a pasteurização, que aquece os líquidos para matar bactérias, possibilitou a embalagem e transporte de líquidos por longas distâncias. Mais recentemente, as empresas introduziram embalagens de plástico hermeticamente fechadas e técnicas de congelamento que transformaram os alimentos processados em um negócio global.
Mas as técnicas de conservação da cerveja ficaram para trás. A bebida em geral perde o sabor depois de menos de três meses. A luz do sol estraga o sabor ao enfraquecer o efeito do lúpulo, permitindo que um componente sulfúrico, com gosto de papelão, predomine no sabor. A fermentação na garrafa e resíduos de bactérias podem causar grandes estragos (embora as cervejas mais escuras, com elevado teor alcoolico, sejam exceções, ficando com sabor mais encorpado).
Melhores métodos de engarrafamento e pasteurização rigorosa permitiram a grandes cervejarias como a Heineken NV e a Anheuser prolongar a vida de seus produtos. Mas, para alguns entusiastas da bebida, essas cervejas, do tipo lager, semelhantes às mais consumidas no Brasil, são simples e de sabor muito brando. As versões artesanais tendem a ser mais vulneráveis, sobretudo porque há muito menos estudos sobre como prolongar o resultado de suas precisas combinações de cevada, lúpulo, fermento e açúcar. As cervejarias pequenas costumam concentrar as vendas em sua própria área, segundo especialistas.
Na busca por meios de incentivar suas indústrias domésticas depois de perder siderúrgicas e financeiras para compradores estrangeiros, o governo belga destinou US$ 7 milhões às pesquisas sobre prolongamento da vida de prateleira dos alimentos, inclusive a cerveja. Ele escolheu quatro cervejarias de propriedade familiar para participar e nomeou como chefe do programa a pesquisadora Collin.
Collin, de 46 anos, construiu sua reputação como destacada engenheira de cervejas nos anos 90. A europeia Interbrew, que depois se uniu à brasileira AmBev e à americana Anheuser-Busch, estava com dificuldades para conservar suas cervejas mais populares por mais de três meses.
Collin analisou de que modo o Trans 2 Nonenal, a substância que dá à cerveja envelhecida o gosto de papelão, age dentro da garrafa. E inventou uma solução: cortar drasticamente a quantidade de oxigênio deixado no líquido enquanto os ingredientes são misturados e fervidos. "Ela olhou para a indústria cervejeira com os olhos de uma especialista em sabores", diz Jérôme Pellaud, mestre cervejeiro da Anheuser, que trabalhou com ela na época.
Collin começou sua carreira elaborando medicamentos contra a esquizofrenia para farmacêuticas. Foi atraída para a ciência dos sabores há cerca de 20 anos pelo fascínio com o vínculo entre os alimentos e a química. A equipe de Collin também trabalha com outros tipos de produtos. "Estamos trabalhando com fabricantes de chocolate em Cuba para ajudá-los a escolher os melhores grãos de cacau", diz ela.
Seu departamento de cervejaria na universidade de Louvain-la-Neuve tem poucos similares na Europa. O laboratório inclui uma máquina de degustação de US$ 250.000 que identifica os componentes químicos em amostras de cerveja, além de caixotes e barris com diferentes tipos para experimentação e uma pequena fábrica de cerveja.
Recentemente, representantes das quatro empresas participantes do programa se reuniram no laboratório de Collin. O gerente de produção de uma delas, Paul Lefebvre, tomava notas em um bloco. A Brasserie Lefebvre, uma cervejaria secular de propriedade familiar, fabrica a Hopus, uma cerveja exótica feita com cinco tipos diferentes de lúpulo; a Barbar, cerveja doce, com mel; e a Floreffe, encorpada e açucarada. Ela fatura US$ 11 milhões por ano. Lefebvre gostaria de vender mais, mas é impedido pela breve vida de prateleira dos produtos.
"A maioria das nossas cervejas adquire um gosto esquisito e as cores ficam embaçadas depois de alguns meses", diz.
Collin e seu colega Laurent Mélotte, ex-engenheiro da Interbrew, dizem que já encontraram algumas soluções para Lefebvre e outros fabricantes: procurar usar ingredientes mais orgânicos, ajustar os níveis de lêvedo e oxigênio e reduzir o tempo que a cerveja fica em altas temperaturas durante a fermentação. "Outras respostas virão depois", diz Mélotte. "Estamos procurando maneiras suaves de ajudar essas cervejas a permanecer idênticas por mais de doze meses."
Lefebvre diz que o crescimento de sua empresa depende de conseguir que suas cervejas durem mais tempo: "Depois de cinco semanas de transporte em um contêiner, não sobra muito tempo para vendê-las."
Veículo: Valor Econômico