Na rica Brasília, a crise foi mesmo uma marolinha

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Cidade teve blindagem do poder aquisitivo da população, emprego estável e programa de investimentos

 

Para Brasília, a crise não passou mesmo da "marolinha" imaginada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando ela começou a mostrar os dentes, ano passado. Cidade mais rica do país, onde a renda per capita chega a R$ 38 mil ao ano, a capital da República passou praticamente ao largo da crise global, salvo um susto aqui e outro acolá. A blindagem veio do alto poder aquisitivo de sua população, da estabilidade no emprego e de um intenso programa de investimentos do governo local, que até 2010 deve injetar R$ 3 bilhões na economia com a construção de 1.760 pequenas e grandes obras públicas.

 

"Aqui não tem nenhuma crise, o que você tem, você vende", diz o presidente do sindicato que reúne as empresas de venda e locação de imóveis, Miguel Setembrino, atualmente respondendo pela presidência da Fecomércio-DF. Mesmo se o lançamento imobiliário custar R$ 10,5 mil o metro quadrado, como aconteceu recentemente com um empreendimento no setor Sudoeste. "Brasília já é o segundo maior mercado imobiliário do país, atrás somente de São Paulo, mas à frente do Rio de Janeiro", comemora Setembrino.

 

No setor imobiliário, sempre um bom termômetro da atividade econômica da cidade, os piores meses foram dezembro e janeiro. Mas já em fevereiro as vendas de imóveis superaram a soma dos dois meses anteriores. Esse foi o período crítico também do comércio, cujas vendas chegaram a cair 12% (muito, mesmo se considerando que a comparação é com o período das festas de fim de ano). Em fevereiro, o desempenho já estava em um terço disso (queda de 4,3%), mas desde março os dados só apontam para cima e o desempenho acumulado de 2009 já está em 0,79% - é claro, nada comparável com o mesmo período de 2008, antes da crise, quando o crescimento foi de 7,05%.

 

Os supersalários do funcionalismo e os investimentos públicos seguraram a onda, mas as características da economia de Brasília ajudaram - terciária, com a maior parte dos empregos gerados no comércio e no serviço público, ela foi menos impactada que os Estados exportadores, os produtores de commodities e aqueles assentados no setor metal-metalúrgico, como Minas Gerais. De qualquer maneira, quando chegou fevereiro o governo levou um grande susto: 7% de queda na arrecadação em relação a igual a mês de 2008.

 

Passados quatro meses, hoje o subsecretário de Planejamento, Adriano Amaral, assegura que a queda na arrecadação de fevereiro "não teve nada a ver com a crise". O que diz Amaral é mais uma boa explicação sobre o estilo brasiliense de vida: o culpado foi o Carnaval.

 

Em janeiro, a arrecadação foi maior que a de janeiro do ano passado. A de março e dos meses seguintes, também. Fevereiro foi um caso isolado. Foi então que Amaral se deu conta de que o Carnaval, neste ano, caiu na última semana de fevereiro - em 2008, na primeira. Ou seja, quem saiu de Brasília em dezembro, como é hábito da população que migrou para o cerrado, e voltou no dia 15 de janeiro, não viajou de novo no início de fevereiro (as datas ficaram muito próximas). Já este ano, quem voltou no dia 15 de janeiro "saiu de novo no fim de fevereiro, pois estava mais espaçado", diz o subsecretário. "Por diversas razões, isso aí acabou afetando a atividade econômica do mês de fevereiro". Seja como for, a arrecadação do Distrito Federal virou o primeiro semestre com um crescimento de 6,9%.

 

O desemprego, que já esteve em 19%, está agora em 17% e "as últimas pesquisas indicam que reduziu um pouquinho, 0,3%, entramos no positivo", diz o secretário da Fazenda, Valdivino Oliveira. Os dados do mercado de trabalho, com um desemprego muito superior à média nacional de 8,1%, são explicados por diferenças metodológicas. Em Brasília ainda é usada "aquela metodologia antiga, onde as pessoas com uma ocupação informal ficam fora das estatísticas", segundo o secretário.

 

"Por outro lado, Brasília é a cidade com a maior renda per capita do país, e a maior parte dessa renda vem do trabalho assalariado", diz Valdivino. "Ela não vem do lucro de empresas, de dividendos. É do trabalho assalariado e o trabalho assalariado é muito induzido ao consumo." Em resumo, os altos salários pagos pelo Judiciário, Legislativo, Ministério Público e Executivo, estadual e federal, ajudaram Brasília fazer da crise a "marolinha" anunciada por Lula.

 

Não é exagero quando se fala de supersalários. No Executivo federal, o gasto médio é de R$ 5.531 por servidor. Na administração direta, esse gasto chega a R$ 15.501 no Banco Central e vai à estratosfera quando se trata do Ministério Público da União: R$ 18.794. Nas empresas públicas e sociedades de economia mista fica pouco acima de R$ 7 mil. Já a média salarial paga pelo governo de Brasília não é muito diferente: R$ 4.577.

 

Segundo o governador José Roberto Arruda (DEM), a média salarial paga aos professores ainda é maior: R$ 4,8 mil. "Infelizmente, hoje, qualquer administrador público tem mais de 90% da sua receita comprometida com pessoal", lamenta Arruda, que só recentemente conseguiu colocar as contas do Distrito Federal de acordo com os parâmetros da Lei de Responsabilidade Fiscal - o que lhe permitiu contrair empréstimos locais e internacionais para o plano de investimentos. "Infelizmente a máquina pública ficou muito cara, como consequência do corporativismo exagerado e do inchaço mesmo."

 

Na quarta-feira da semana passada, Arruda estava enredado numa negociação bizarra: os médicos do Distrito Federal ameaçavam entrar em greve se não pudessem "ganhar além do teto" estabelecido para os Poderes, que é de R$ 22 mil. Os médicos constituem uma categoria que pode ter mais de um emprego. Pela demanda apresentada, eles poderiam receber até R$ 44 mil, se somassem o teto em dois empregos. Há caso de diretor de hospital ganhando já acima do teto: R$ 23 mil. Isso, numa das áreas mais sucateadas do Distrito Federal: a saúde - somando o entorno (as cidades limítrofes ao Distrito Federal), a população chega perto de 4 milhões de pessoas, e a área de saúde não estava preparada para essa explosão.

 

A crise do Brasil é que se reflete em Brasília. Outra característica única do Distrito Federal é que a União banca as folhas de pagamento da educação, saúde e segurança pública, por meio de um fundo do constitucional. Só este ano serão R$ 9 bilhões dos R$ 18 bilhões que o governo local deve movimentar, entre salários, consumo e obras - "o que tem um efeito multiplicador na economia e acaba gerando aquecimento", como lembra o secretário da Fazenda, Valdivino Oliveira. Desde a sua criação, em 2002, o fundo cresce em torno de 8,9% ao ano, mas de 2009 para 2010 esse aumento será de apenas 1% - reflexo da crise nas contas do governo federal.

 

Entre o que foi projetado antes de setembro do ano passado, quando a crise mostrou os dentes, e o orçamento que está sendo efetivamente executado, o governador Arruda considera que teve uma perda média, em seis meses, de 6%. "Uma queda de arrecadação de 6% praticamente elimina a sua capacidade de investimento", diz. "Então por que Brasília se salvou?", pergunta Arruda. Ele mesmo se apressa a responder: "Porque no primeiro ano de governo eu fiz cortes muito profundos, eu tirei 23 mil servidores que eram contratados sem concurso, entreguei 140 prédios que eram alugados, joguei o custeio lá embaixo. A crise me pegou com bases sólidas."

 

Arruda tem R$ 3 bilhões para investir até o fim do mandato, em 2010. Dinheiro de arrecadação própria, da União e de empréstimos internacionais. Neste ano será R$ 1,6 bilhão. E nem todos em projetos de obras para a Copa do Mundo de 2014, como a construção de um novo estádio de futebol.

 

As empresas que em agosto do ano passado projetavam investir em Brasília asseguram que mantiveram o cronograma, mas o fato é que botaram o pé no freio e só agora estão retornando às plantas. Inclusive as empresas de um incipiente polo petroquímico que o governo tenta estabelecer em Brasília com o auxílio de benefícios fiscais. A PepsiCo, multinacional americana de alimentos e bebidas, reafirmou que construirá em Brasília uma das três novas unidades que terá no Brasil, segundo o vice-governador do Distrito Federal, Paulo Octavio de Oliveira.

 

Para Arruda, a alta renda per capita de Brasília ajuda a explicar apenas uma boa parte do motivo pelo qual a cidade sobreviveu bem à crise. "A renda per capita alta engana, no caso de Brasília, porque nós temos o perfil de grande desigualdade: uma pequena parte da população com alto índice de remuneração, mas uma população majoritária da população de desempregados e subempregados com remuneração baixa."

 

São as contradições de Brasília, cidade em que o governo pode investir R$ 1,6 bilhão e criar cerca de 50 mil empregos em plena crise, ou na qual, por trás do Palácio da Alvorada, surge uma favela que ninguém vê porque, ao contrário dos morros do Rio, é uma cidade plana, enquanto as estatísticas mostram que, no meio do cerrado brasileiro, está a 5ª maior frota de embarcações de esporte e recreio do país: 17 mil iates, lanchas, jet-skys e veleiros, verdadeira metáfora da cidade mais rica do país.
 


Veículo: Valor Econômico


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