A Lei da Entrega e as relações de consumo

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As relações de consumo têm se tornado cada vez mais complexas e, em razão disso, a legislação deve acompanhá-las para proteger os consumidores. O Código de Defesa do Consumidor acaba de completar 20 anos de existência e, nesse período, muitas mudanças ocorreram no relacionamento entre consumidores e fornecedores no Brasil.

 

O código foi um marco histórico importante nas relações consumeristas porque passou a coibir práticas abusivas por parte das empresas em prejuízo do coletivo, que acabavam por deixar em desequilíbrio a relação de consumo. A vulnerabilidade do consumidor na relação de consumo, ou seja, sua fragilidade em relação ao fornecedor aparece como norteadora do disposto no artigo 4º da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Em razão desse dispositivo, o código estabelece que as relações de consumo devam ser sempre pautadas pela boa-fé e pelo equilíbrio na "harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo".

 

Com o passar dos anos e com a informação mais acessível por variados meios de comunicação, os consumidores tornaram-se mais ativos no sentido de pleitear seus direitos, os quais são exercidos, por vezes, por princípio de justiça e não de valor comercial. Com isso, tem aumentado expressivamente o número de reclamações. Como tem sido noticiado, os setores campeões de reclamação no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), são os serviços de telefonia, planos de saúde e bancos.

 

Uma dos mais recentes alvos de reclamações de consumidores diz respeito à entrega de produtos, tanto comprados em lojas reais quanto nas virtuais. Diante das diversas reclamações, e com o intuito de sanar algumas delas, em outubro de 2009 foi publicada no Estado de São Paulo a Lei 13.747, de 2009, a chamada Lei da Entrega.

 

A lei coloca as empresas do Estado de São Paulo em franca desvantagem
A lei prevê que o fornecedor deve programar data e turno para a entrega de serviços ou produtos, sob pena de aplicação de multas. A fiscalização do cumprimento da lei é feita pela Fundação de Defesa e Proteção do Consumidor (Procon-SP).

 

No fim do ano passado, a Fundação Procon-SP autuou 77 estabelecimentos comerciais, sendo 57 lojas online e 20 físicas, por descumprimento da Lei da Entrega. Com base em reclamações de consumidores e no monitoramento feito por fiscais, o órgão de defesa do consumidor identificou irregularidades em 70 empresas que não fixaram data e turno para entrega de produtos e que não cumpriram os prazos de entrega informados aos consumidores

 

Se reincidirem na infração, os estabelecimentos podem receber não somente multa, como também ter a suspensão temporária de suas atividades por determinação do Procon-SP.

 

No entanto, as lojas - especialmente as virtuais - reclamam que, com o advento da lei, seus custos mais que dobraram. Quando isso ocorre, em geral, esses custos são repassados integralmente para o consumidor. As empresas alegam que, caso contrário, será inviável a operação de suas empresas e a aplicação da lei. A situação tende a se agravar ainda se a loja virtual depender da terceirização da entrega, ou seja, de fornecedores terceiros para a consecução do serviço de entrega.

 

É verdade que o consumidor nada tem a ver com isso, mas se o custo realmente ficar acima do suportável para as empresas, possivelmente elas sairão do mercado e, a longo prazo, isso traria um prejuízo aos consumidores, já que a concorrência seria menor.

 

Outro ponto a se destacar é o de que a lei é omissa quanto à cobrança da taxa de entrega em dia e turno predeterminados. O Procon-SP se manifesta no sentido de que a cobrança é indevida, autuando várias empresas que tem cumprido com a lei, mas com a cobrança da referida entrega.

 

Há empresas, no entanto, que conseguiram liminar na Justiça com o fim de obstar o Procon-SP de autuá-las, com base em um desequilíbrio na competitividade na entrega dos produtos não só com empresas de outros Estados, mas no final das contas, perante o consumidor, o que contraria os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência.

 

Como a legislação não prevê que as empresas podem ir à falência ou que elas têm que ter prejuízo - e nem poderia, pois estaria contrariando a previsão constitucional mencionada do artigo 170, quando trata da ordem econômica e da livre iniciativa - a Lei da Entrega paulista, na verdade, coloca as empresas do Estado de São Paulo em franca desvantagem no que toca a empresas de outros Estados, das quais não se pode exigir o cumprimento dessa norma.

 

Se por um lado a Constituição Federal prevê no artigo 5º, XXXII, a defesa do consumidor, também prevê em seu artigo 170, a compatibilização da proteção do consumidor e a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico.

 

Pode-se, assim, verificar que, além da contrariedade aos preceitos constitucionais, há também franco desequilíbrio dos fornecedores na relação de consumo, o que viola o próprio Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, ao dispor da Política Nacional das Relações de Consumo.

 

Ao serem analisadas as questões que envolvam relações de consumo, é importante sempre levar em conta o bom senso para o equilíbrio e harmonia dessas relações. Em relação à Lei da Entrega, no fim das contas, os custos para seu cumprimento serão repassados ao consumidor e o fornecedor estará em desvantagem em relação aos demais Estados por ter um produto ou serviço menos vantajoso economicamente. (Ana Elisa da Rocha é advogada especialista em contratos e sócia do escritório Oliver Fontana Advogados Associados)

 

Veículo: Valor Econômico


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