Agronegócio e segurança alimentar, inimigos?

Leia em 4min 30s

Na semana passada foi realizada a IV Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que teve como lema "alimentação adequada e saudável: direito de todos". Um leitor desatento certamente veria nesse tema uma proposta a apoiar de olhos fechados. Mas uma leitura mais detalhada, que se propusesse a entender as razões que dão suporte a esse lema, provavelmente levaria vários leitores a ter dúvidas quanto a um apoio irrestrito a ele. Tendo lido com cuidado tais razões, duas perguntas me vêm à cabeça: quais são as motivações dos líderes da formulação das políticas de segurança alimentar no País para fomentarem o debate que afirma que o modelo agrícola brasileiro é uma ameaça à segurança alimentar e nutricional? Essa decisão de colocar como inimiga a produção agrícola que utiliza tecnologia, está integrada aos mercados (nacionais e internacionais) e busca competitividade via ganhos de escala - agronegócio - procede?

Não sei a resposta à primeira pergunta. Mas posso dizer que ela é baseada na crença de que o agronegócio gerou a miséria que ainda existe no meio rural brasileiro. Nessa linha, é o agronegócio que impede o desenvolvimento dos povos tradicionais, indígenas e minorias étnicas que vivem dos recursos naturais, pois é um modelo baseado em escala - confundida por essas lideranças como monocultura - que concentra terra e, pelo uso de sementes transgênicas e agrotóxicos, promove a destruição da biodiversidade, de que tanto dependem tais povos. Além disso, segue o raciocínio, o agronegócio não possibilita a emergência e o acesso a tecnologias adaptadas para esses povos e aos agricultores familiares. Paro por aqui antes que eu seja convidado a fazer parte do Consea. E me concentro na resposta à segunda pergunta.

Não se trata de negar que ainda persistam no País situações de insegurança alimentar e que as comunidades onde a insegurança mais predomina são as dos povos tradicionais e indígenas. O problema existe e precisa ser combatido, com ações governamentais e o reconhecimento da sociedade de que a História do Brasil carrega um passivo que precisa ser atacado. Aliás, vale lembrar que muitas outras nações encontram o mesmo tipo de desafio e o estão enfrentando, em muitos casos, de formas diversas das escolhidas por aqui.

É preciso lembrar ainda que, como qualquer economia que ainda tem instituições em formação, problemas de corrupção e definições frágeis de questões-chave, como direitos de propriedade e ameaças à biodiversidade, existem: nas propriedades rurais, nos assentamentos da reforma agrária e nas reservas indígenas. É sabido que o desmatamento e a degradação florestal ocorrem nos três, sem privilégio de culpabilidade para nenhum deles.

Também posso reconhecer sem maiores dificuldades que boa parte da pesquisa agrícola, e tenho muitas e boas razões para afirmar que essa foi uma opção correta, está orientada para desenvolver tecnologias que tornam os sistemas produtivos - via sementes melhoradas, práticas de produção que usam melhor a terra, técnicas de manejo que procuram maximizar o uso dos insumos, etc. - mais eficientes e com maior produtividade. Tais pesquisas procuram dar soluções tecnológicas a sistemas produtivos que estão integrados aos mercados, uma vez que estes são caracterizados pela competição e pela tendência estrutural de queda real dos preços dos alimentos. Assim, sistemas de produção de base agroecológica, defendidos como opção correta pela conferência citada, que atendem predominantemente mercados locais e ainda não se mostraram capazes de produzir com eficiência e escala as commodities comercializadas nos mercados globais, tendem a receber menos atenção dos pesquisadores e das empresas de pesquisa.

Por fim, podemos facilmente verificar que o modelo agrícola brasileiro usa bons contingentes de terra, como o fazem as reservas indígenas e o faria a produção agroecológica se todo o alimento consumido no Brasil viesse desse tipo de agricultura. Usar terra, assim como comprometer a biodiversidade, não é e nunca será exclusividade do agronegócio.

Todas as questões apresentadas têm, ao menos em teoria, soluções. Nenhuma delas, no entanto, emerge do reconhecimento, explicitamente colocado em todos os documentos de suporte à conferência, do papel de vilão do modelo agroexportador brasileiro. Mais do que isso, todas as soluções podem ser idealizadas e implementadas independentemente da existência do agronegócio. Ou seja, embora seja a escolha feita pelas lideranças da segurança alimentar - a de que só o modelo da agroecologia pode garantir segurança e qualidade alimentar no Brasil e, portanto, o agronegócio não beneficia as camadas da sociedade que enfrentam a insegurança alimentar -, a emergência de um não ocorre em detrimento do outro. Somente na cabeça dos formuladores das políticas de segurança alimentar no Brasil é que todos os problemas serão resolvidos se o agronegócio for extirpado.

Trata-se de uma visão ideológica, que confunde o modelo agrícola contemporâneo - aquele que se desenvolveu a partir dos anos 1970 e hoje conhecemos como agronegócio - com a exploração do patrimônio rural do passado histórico brasileiro e tem enorme dificuldade de reconhecer no Estado o grande responsável pelos problemas de insegurança alimentar que perduram no Brasil. São os setores do agronegócio integrados aos mercados globais que estão incorporando, nos seus sistemas produtivos, ações de sustentabilidade e de responsabilidade social. Ignorar esse fato e igualar o agronegócio ao proprietário de terra do passado brasileiro significa apagar a História recente do Brasil em busca de um modelo de meio rural em decadência.


Veículo: O Estado de S.Paulo


Veja também

Brinde importado tem alta e a produção nacional cai

O setor de brindes promocionais está dividido às vésperas do Natal deste ano.   Enquanto os ...

Veja mais
Roupas de estilistas para a classe C

Cinco grifes, incluindo Huis Clos e Juliana Jabour, vendem vestidos de festa na RiachueloQuem entra em loja da grife Hui...

Veja mais
Chuva irregular é risco para café

As irregularidades das chuvas nas principais regiões cafeeiras do país acenderam sinal de alerta entre os ...

Veja mais
Glynett ganha mercado com produtos da linha capilar

A vaidade feminina tem se consolidado, cada vez mais, como um dos principais fatores para a expansão do setor de ...

Veja mais
Discos de vinil vira febre entre adolescentes

Os discos de vinil sumiram do mercado no final dos anos 90. No entanto, eles ainda mantêm um exército de ad...

Veja mais
Shoppings dão a largada para as compras de Natal

Complexos apostam na decoração e sorteios para alavancar vendas O pequeno Benjamim Simões Fischer,...

Veja mais
Mapa deve certificar a produção de leite

O leite é um dos produtos que está em processo de certificação para produção i...

Veja mais
Produção de tomate tem alta em Minas

Produtores de tomate de Minas Gerais colheram 441,8 mil toneladas da hortaliça neste ano, volume 8,7% superior ao...

Veja mais
Natal está antecipado no ramo de decoração

O Natal chegou mais cedo neste ano. Pelo menos é isso que estão percebendo os empresários que traba...

Veja mais