Argentina congelada

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Acredite, se quiser: a presidenta Cristina Kirchner recorre ao fracassado congelamento de preços para controlar a inflação.



Por Denize BACOCCINA

Os brasileiros com mais de 40 anos devem se lembrar, provavelmente sem saudades, de como era a gestão da economia brasileira nos anos 1980. Entre 1986 e 1989, durante o governo do presidente José Sarney, vários planos econômicos tentaram, sem sucesso, controlar a inflação com congelamento de preços. Todos fracassaram. Pois o governo argentino, numa espécie de “efeito Orloff ao contrário” – o efeito Orloff é uma expressão criada a partir de uma propaganda de vodca que ironizava o fato de o Brasil sempre copiar, com algum tempo de atraso, as medidas econômicas adotadas pela Argentina –, anunciou na segunda-feira 4 que os preços nos supermercados estavam congelados até o dia 1o de abril.
 

A Associação dos Supermercados Unidos, que reúne as grandes empresas, concordou. Parece piada. Mas, no país da presidenta Cristina Kirchner, é apenas mais uma maneira heterodoxa de tentar controlar a inflação. Os argentinos convivem há tempos com índices de custo de vida bem acima da média da região – só rivalizam com a Venezuela, onde os preços também aumentam em ritmo acelerado. Em vez de cuidar da estrutura macroeconômica, o governo preferiu mexer nas estatísticas. A manipulação do índice começou ainda em 2007, com a intervenção do então presidente Néstor Kirchner no Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec).
 
Desde então, governo e economistas divergem sobre a variação dos preços e o crescimento econômico. No ano passado, a inflação oficial ficou em 10,8%, mas institutos independentes estimam que os preços subiram pelo menos 25%. O PIB, que nos cálculos do governo cresceu entre 2% e 3% no ano passado, ficou próximo de zero na avaliação do mercado. A falta de confiança nas estatísticas já vinha sendo questionada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). No dia 1o, a Argentina recebeu uma declaração oficial de censura pela má qualidade do índice de preços. Trata-se da primeira etapa de um processo que pode culminar com a expulsão do país da instituição.
 
Cristina preferiu criticar o FMI no Twitter, ferramenta de comunicação que tem usado com fervor nos últimos meses. “A Argentina foi aluna exemplar do FMI nos anos 1990 e seguiu cada uma das receitas, e quando explodiu em 2001 foi abandonada”, afirmou. Apesar das reclamações da presidenta, o ministro da Economia, Hernán Lorenzino, disse que o país vai elaborar um novo índice de inflação no último trimestre deste ano. A manipulação do índice de preços – e, agora, dos próprios preços – tem efeitos que vão além da falta de informação oficial e dos reajustes nos salários. Sem confiança na manutenção do poder de compra da sua moeda, os argentinos tentam proteger sua renda comprando dólares e até reais, o que acaba forçando as cotações no mercado paralelo.
 
Para evitar a fuga de reservas, o governo adotou, no ano passado, medidas que dificultam a compra de moeda estrangeira. “Oficialmente, não existe restrição, mas toda compra precisa ser autorizada e cada caso é analisado individualmente”, diz Daniel Kerner, analista de Argentina da consultoria Eurasia Group. “Mesmo sem restrição legal, quando a empresa pede, eles falam não”, afirma. As amarras cambiais já tiveram repercussão no comércio. As importações argentinas caíram 9% no ano passado, enquanto as exportações diminuíram 5% em relação ao ano anterior. O intercâmbio com o Brasil foi ainda mais afetado.
 
As exportações brasileiras para a Argentina caíram 20,7% em 2012, enquanto as compras de produtos argentinos diminuíram apenas 2,7%. Na avaliação do cientista político Thiago de Aragão, da consultoria Arko Advice, todas as ações oficiais buscam garantir a harmonia entre a população e o governo, não importa quanto isso prejudique os outros atores, mesmo que eles sejam as empresas que garantem o funcionamento da economia. “Essas medidas podem ter um sucesso temporário”, diz ele. “Mas é como uma infiltração no joelho.” Ou seja, em algum momento, a Argentina vai ter que enfrentar a realidade.
 


Veículo: Revista Isto É Dinheiro


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