Artigos científicos questionam os efeitos das bebidas esportivas e afirmam que pesquisas pagas pela própria indústria criaram uma duvidosa teoria da hidratação
Uma série de artigos publicada na revista científica "British Medical Journal" questiona a necessidade de ingerir bebidas como Gatorade e Powerade durante exercícios físicos. A bomba dividiu especialistas e causou reações na indústria.
Com o título "The Truth About Sports Drinks" (a verdade sobre bebidas esportivas), um dos textos afirma que "a ciência da hidratação" é uma criação da indústria e que as principais pesquisas que embasaram o consumo de isotônicos nas últimas décadas foram pagas pelas próprias fabricantes.
"As pessoas são bombardeadas com mensagens sobre o que deveriam beber durante o exercício. Mas esses dogmas são novos", diz o artigo, escrito pela editora de pesquisas da revista, Deborah Cohen, médica. "A indústria patrocinou cientistas, que aconselharam organizações esportivas, que elaboraram diretrizes [...] e espalharam os perigos da desidratação", continua o texto.
O "British Medical Journal" analisou 170 pesquisas durante quatro meses. "Não são estudos de boa qualidade. Quando a pesquisa é financiada, é preciso estar ciente de que resultados negativos não são publicados", disse Cohen à Folha.
Em resposta, a Associação Americana de Bebidas divulgou um comunicado argumentando que o patrocínio não invalida o mérito científico dos estudos.
Já o Colégio Americano de Medicina do Esporte, que tem diretrizes de hidratação seguidas pelo mundo todo, afirmou que vai analisar melhor as provas científicas no futuro.
Bebidas isotônicas são feitas de água, sais minerais e carboidratos. Criadas na década de 1960, puxam um mercado mundial que só cresce.
O Brasil bebeu 75,4 mil litros desses produtos em 2011: um crescimento de 29% em relação a 2009 e de 9% em relação a 2010, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas Não Alcoólicas.
SEM DIFERENÇA
Não há consenso na "ciência da hidratação". Uma parte dos especialistas diz que as bebidas esportivas são absorvidas mais rapidamente do que a água pelo organismo -graças à fórmula que mescla carboidratos e minerais imitando as concentrações presentes no sangue.
Para outra parte, não há diferença ou é até pior."A absorção demora quase a mesma coisa", diz Mirtes Stancanelli, nutricionista do esporte e pesquisadora da Unicamp. Para Debora Cohen, isso "não faz muita diferença".
Numa coisa todos concordam: o consumo de isotônico é indicado durante a prática esportiva ou depois -não a qualquer hora e a qualquer um. "Não substitui a água", afirma Heloisa Guarita, presidente da Associação Brasileira de Nutrição Esportiva.
A bebida tem a metade das calorias de um refrigerante e quantidades significativas de sódio. Por isso, deve ser evitada por quem tem hipertensão, segundo Arnaldo José Hernandez, chefe do grupo de medicina do esporte do Hospital das Clínicas de SP.
Durante a atividade física, o isotônico pode ser bom se houver perda de minerais por meio do suor ou se for preciso repor carboidratos. Aí é fonte de energia e pode melhorar o desempenho. Mas muitos dizem que, na maioria dos casos, água e alimentação certa dão conta.
"Às vezes é necessário, como em provas de 'iron man' que duram horas", diz Jomar Souza, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte. Mas, para a academia de todo dia, não. "O consumo é indicado a partir de uma hora de exercício com sudorese intensa."
Para o educador físico João Bouzas Marins, professor da Universidade Federal de Viçosa, a ideia de repor minerais perdidos no suor é exagero. "Consumimos muito sódio na dieta. A probabilidade de dar problema por falta de sódio é mínima."
Mas Marins reconhece que o carboidrato presente na bebida é útil para dar energia a partir de uma hora de exercício. "Em atividades longas existe risco de hipoglicemia."
QUANTO BEBER
A falta de consenso científico atinge também a ingestão de água durante a atividade física.
"Há risco de desidratação, mas também há risco de hiper-hidratação, quando há a diluição exagerada dos minerais do corpo", diz Souza.
Por conta disso, alguns defendem a ingestão do líquido apenas quando se está com sede. "Se não há sede, não há necessidade de beber. Não parece lógico para um sistema testado exaustivamente na natureza?", questiona Luiz Oswaldo Rodrigues, fisiologista do esporte da Universidade Federal de Minas Gerais.
Já os adeptos da hidratação preventiva argumentam que a sede é indício de desidratação, ainda que leve. "Perdemos água o tempo todo e não temos um reservatório. Isso é potencializado no exercício. É importante se hidratar antes da sede", defende Heloisa Guarita.
A recomendação da nutricionista é beber até 250 ml 20 minutos antes da atividade física e, em média, 250 ml a cada 20 minutos de prática.
Já para Turíbio Leite de Barros, fisiologista do exercício da Unifesp, o ideal é ingerir o que é perdido. Isso pode ser calculado se o praticante se pesar antes e depois do exercício. "A taxa de sudorese varia muito de pessoa para pessoa. Se ela perde, em média, um quilo, pode dividir a ingestão de um litro de água durante a prática do exercício."
'Há evidências científicas dos benefícios', diz fabricante
A PepsiCo, fabricante da bebida esportiva Gatorade, informou por meio de nota que está segura de que trabalha com um produto "comprovado cientificamente e recomendado por profissionais da saúde".
"O 'Gatorade Sports Science Institute' (GSSI) é uma instituição sem fins lucrativos que tem como objetivo principal compartilhar informações e expandir os conhecimentos nas áreas de nutrição e ciências do esporte."
Ainda de acordo com a nota enviada pela fabricante, o instituto GSSI é assessorado por cinco grupos "compostos por renomados cientistas, pesquisadores, médicos, técnicos, treinadores, nutricionistas e esportistas de vários países representando todos os continentes".
Há também grupos regionais com representantes nos Estados Unidos, no Canadá, na Europa, na Austrália, na Nova Zelândia, na Ásia e na América Latina.
"Mundialmente, mais de 100 mil profissionais ligados às áreas de medicina, nutrição e esporte recebem informações e publicações elaboradas pelo GSSI em cerca de 140 países."
Sobre a acusação do "British Medical Journal", segundo a qual a "ciência da hidratação" é uma criação da indústria, a PepsiCo afirma que há "uma grande quantidade de pesquisas que mostram os efeitos negativos da desidratação durante a prática de exercícios, e os efeitos da hidratação para evitar que isso ocorra também foram descritos".
E a nota complementa: "Comercializamos produtos para atletas e pessoas ativas".
REPOSIÇÃO
Também por meio de nota, a Coca-Cola Brasil, fabricante do isotônico Powerade, marca citada no artigo da revista científica britânica, afirma que "a bebida esportiva promove uma reposição hidroeletrolítica [de água e minerais] não alcançada apenas com o consumo de água" porque fornece sódio e carboidratos.
"O carboidrato também ajuda a hidratar, uma vez que atua juntamente com o sódio auxiliando na absorção do líquido no intestino", diz o comunicado.
Sobre a acusação de que as pesquisas sobre o tema não são bem-feitas, a Coca-Cola afirma que "a comunidade acadêmica sustenta evidências científicas a respeito da desidratação e algumas delas, inclusive, antecedem a criação das bebidas esportivas".
Por fim, a nota ressalta que o público-alvo da bebida é formado por pessoas que fazem exercício físico intenso. "Consideramos sempre seguir a recomendação presente no rótulo: 'este produto não substitui uma alimentação equilibrada e seu consumo deve ser orientado por nutricionista ou médico'."
Veículo: Folha de S.Paulo