Organizar as cervejas por país de origem foi a lógica adotada no Empório Alto dos Pinheiros quando a loja abriu, cinco anos atrás, em São Paulo. Havia a prateleira das belgas, a das americanas e assim por diante. No último mês, o proprietário decidiu rever a teoria dos conjuntos. A divisão geográfica já não era suficiente para enquadrar a crescente oferta de rótulos lançados por bandas de rock. A solução foi criar uma prateleira só para os selos musicais. Nela convivem mais de 15 títulos, das concorridas garrafas dos ingleses do Iron Maiden às três receitas dos brasileiros do Velhas Virgens. A elas somaram-se, só na última semana, uma brown ale do Titãs e uma german pilsener do Paralamas do Sucesso. E até o fim do ano outras cinco bandas terão seus nomes associados à bebida fermentada.
Lançada oficialmente durante o Mondial de La Bière, no Rio de Janeiro, a cerveja do Titãs chega nesta semana aos pontos de venda de todo o país. Escura e com 5,5% de teor alcoólico, foi produzida pela Cervejaria Colorado, de Ribeirão Preto. Trata-se do primeiro grande produto licenciado pelos autores do histórico álbum "Cabeça Dinossauro" (1986). "Foi uma parceria óbvia entre uma banda brasileira com 30 anos de carreira e uma cervejaria autêntica e tão admirada quanto o Titãs", diz Cristina Soares, sócia da Officinatrês, responsável pela gestão administrativa e financeira do grupo.
"Terceira ou quarta banda" a procurar a fábrica de Ribeirão, o Titãs emplacou a parceria graças à empatia que o presidente da Colorado, Ronaldo Nascimento, tinha com o quarteto. "Não queríamos abraçar qualquer projeto. Eles têm tudo a ver com a gente, há sintonia. É uma banda longeva, com proposta musical centrada, que nunca seguiu modismos", afirma o executivo.
Nascimento compara o processo de desenvolvimento da cerveja, "uma criação colaborativa", ao de composição de uma música. "Os mestres-cervejeiros ficaram empolgados, foram dando ideias, como se estivessem escrevendo uma canção. Chegamos a uma brown ale com toque de laranja."
Mas por que licenciar cerveja e não outra bebida? "Rock não combina com vinho. Camarim de banda sempre tem cerveja", diz o guitarrista Tony Bellotto. "É uma bebida mais fácil e leve, consumida tanto pelos músicos quanto pelo público que vai a concertos e festivais de rock."
O vocalista Branco Mello compara o prazer de lançar o rótulo ao de pôr um disco novo nas lojas. "Minha expectativa agora é poder chegar aos bares e restaurantes que gosto e ver nossa cerveja na geladeira."
Os primeiros roqueiros a colocar no mercado brasileiro um rótulo próprio foram os integrantes do Sepultura, em 2009, para comemorar os 25 anos do grupo. À época, a bebida era fabricada pela extinta Fábrica do Chope, na Vila Leopoldina, bairro paulistano. Com o fechamento do espaço, a produção migrou dois anos depois para a Bamberg, microcervejaria em Votorantim. A weiss, que já fazia parte do portfólio da marca, passou então a ser envasada também com o selo da banda.
Meses depois, a pequena fábrica desenvolveu sua primeira receita exclusiva para uma banda: a bohemian pilsen Camila Camila, encomendada pelo grupo gaúcho Nenhum de Nós. "Queríamos um estilo que tivesse as mesmas características da personagem da música [de 1987]. Que fosse delicada e, ao mesmo tempo, forte, como a Camila da letra [inspirada numa amiga deles que era agredida pelo namorado]", diz o proprietário da Bamberg, Alexandre Bazzo.
Dos 12 rótulos fixos da microcervejaria, quatro atualmente são de bandas. Os últimos foram Raimundos, em março, e Os Paralamas do Sucesso, semana passada. "Recebemos bastante proposta de grupos de música. Mas só fazemos quando a gente se identifica com a banda e com o som deles. Lógico que tem o lado comercial. Ainda assim, o maior ganho é com a imagem, dos dois lados. Tanto que, quando comecei a conversar com o pessoal do Paralamas, deixei claro que, se estavam pensando em dinheiro, seria melhor lançar outro disco, e não uma cerveja", diz Bazzo.
O Calibre, uma german pilsen feita para o grupo de Herbert Vianna, João Barone e Bi Ribeiro, chegou ao mercado na última semana sem fazer estardalhaço - o evento oficial de lançamento ainda não tem data marcada. O estilo foi escolhido depois de degustações conduzidas pelo proprietário da Bamberg. "Foi fácil chegar à receita, porque o Baroni e o Bi sabem bastante sobre as artesanais e já tentaram até fazer em casa. Quando tomaram a kölsch, uma sazonal de Carnaval, queriam ela. Mas minha intenção era fazer uma inédita, com características semelhantes à kölsch, que fosse clara e amarga."
O acordo comercial estabelecido entre as cervejarias e os músicos varia de banda para banda. Camila Camila e Calibre é a própria Bamberg que distribui - tanto as garrafas de 600 ml quanto os barris de chope. "Pelo nosso acordo, pago a parte deles com cerveja, uma caixa por mês para cada integrante. É a maior prova de que não estão interessados em dinheiro."
Já as produzidas para o Sepultura e o Raimundos são repassadas para a distribuidora oficial das bandas, a Bushido Brazil, que se encarrega da logística e negociação com os pontos de venda. "Encomendo o lote, a cervejaria produz, me entrega e eu pago 10% de royalties para os artistas", diz Mauricio Montoro, proprietário da empresa. Boa parte dos lançamentos nacionais, aliás, tem o dedo dele por trás. Os mais recentes foram os rótulos do Matanza, Korzus, Claustrofobia e João Gordo - produzidos pela Dortmund, em Serra Negra. Foi também ele quem contatou a Magnus, de Socorro, para produzir os dois estilos do Angra: a red ale Angels Cry e a bohemian pilsner Holy Land.
No sábado a Bushido lança com uma festa no clube Inferno, em São Paulo, o rótulo da banda Ratos de Porão, uma pilsen fermentada pela Dortmund. Em dezembro estão previstas ainda as dos grupos Krisiun, Inocentes, Oitão, Black Drawing Chalks e Kiara Rocks - fermentadas pela Hbier, em Santa Cruz do Sul (RS), à exceção da última.
Nem todas as bandas, contudo, recorrem à expertise de empresários do setor para escolher os estilos e pôr o produto no mercado. A banda independente Velhas Virgens estendeu o conceito de autonomia também à produção de cervejas. Tem três rótulos, todos com receitas testadas primeiro pelo contrabaixista (e homebrewer) Tuca Paiva. Eles delegam a produção à Invicta por uma questão industrial. "O Velhas tem um modelo diferenciado. Eles fazem parte do negócio. Não cederam a marca nem a distribuição. Sou apenas o parceiro industrial", diz Rodrigo Silveira, proprietário da Invicta.
O envolvimento do Velhas com a bebida é antigo. Tem garrafa de cerveja no logo da banda, na temática das músicas, na capa dos álbuns e foi também ela que fermentou o último negócio do grupo: um bar aberto pelos "velhas" na zona norte de São Paulo três meses atrás. Qual é o foco do empreendimento? Cerveja artesanal nacional. "É legal associar a marca musical à da cerveja. Só acho que deve haver identidade com o produto. A gente tem a ver com o líquido que está ali dentro", diz Tuca Paiva.
Paulo Almeida, sócio do Empório Alto dos Pinheiros, endossa o laço estreito. "Vira e mexe eles mesmo vêm trazer as cervejas. Adoram fazer isso, passam aqui e conversam com o público. É mais um jeito de as bandas se expressarem. Um marketing, mas um marketing gostoso", diz. "Imagina se o Vinicius ou o João Gilberto lançariam uma cerveja. Fariam algo mais blasé, um drinque, um uísque. Rock é comportamento."
Veículo: Valor Econômico