A expansão dos gastos públicos está na origem dos desafios enfrentados atualmente por União Europeia e Estados Unidos e tem potencial para se tornar uma fonte de incômodo também para países mais distantes do epicentro da crise, como o Brasil, avalia o economista italiano Vito Tanzi. "No Brasil, o excesso de gastos é um problema em progressão", afirma o doutor em economia por Harvard, sem negar, no entanto, que em seus tempos de FMI já acompanhou o país mais de perto. Tanzi foi chefe da divisão de política tributária do Fundo Monetário Internacional (FMI) entre 1974 e 1981, assumindo em seguida a diretoria do departamento de assuntos fiscais do mesmo órgão até 2000. Ele também estudou os efeitos corrosivos da inflação sobre a arrecadação de impostos, o que ficou conhecido como "efeito Tanzi".
Em entrevista ao Valor na tarde da última terça-feira em São Paulo, antes de participar de um debate no Instituto Fernando Henrique Cardoso, Tanzi citou um cenário mais desafiador para o Brasil, que inclui um câmbio valorizado e seus impactos negativos sobre as exportações, e preços de commodities abaixo dos picos alcançados nos últimos anos. Segundo Tanzi, o tamanho do Estado brasileiro, refletido no amplo número de programas econômicos e sociais, é algo que precisa ser enfrentado. "Uma vez introduzido um programa é muito difícil voltar atrás". Para Tanzi, é possível que o déficit fiscal do Brasil talvez seja maior do que apontam as estatísticas, em razão de "truques" - os mesmos, diz ele, que alguns países europeus lançaram mão anos antes da crise que eclodiu em 2008 e da qual a região não consegue se desvencilhar.
Na origem desses problemas que afligem os países desenvolvidos, diz ele, estaria a expansão progressiva dos gastos públicos iniciada muito antes da crise e sustentada, pelo menos até meados da década de 1990, pelo aumento da carga tributária. Depois disso, diante da disposição cada vez menor das populações em arcar com impostos mais altos, a opção foi recorrer às emissões de dívida, mais e mais difíceis de serem financiadas.
Para Tanzi, o fato de o incremento de gastos públicos estar na origem do problema é a razão pela qual não pode ser considerado parte da solução. Essa, em sua opinião, passa necessariamente pelo corte de gastos - o que é também o argumento central do novo livro do economista, 'Dollars, Euro and Debt', a ser publicado no Brasil em dois ou três meses. "A Europa vai ter que cortar gastos públicos". Obviamente, diz ele, isso não vai poder ser feito de um dia para outro, mas sim gradualmente.
Tanzi, contudo, tem o cuidado de não se colocar contra qualquer tipo de estímulo fiscal. Ele avalia que são bem-vindos os pacotes de estímulos que têm início no momento em que as contas fiscais não saíram do controle, mas o sentimento das pessoas com relação à economia apresenta piora, com queda nos investimentos e gastos. "Mas se a situação fiscal já é bastante ruim e se a crise tem origem em um único setor, não se resolve o problema simplesmente injetando mais dinheiro na economia".
Esse cenário traz ao assunto a economia americana, cuja condição, diz Tanzi, é tão ruim quanto a dos países da União Europeia, pelo menos de um ponto de vista fiscal. "Os dados geralmente olhados são os do governo federal, que excluem a dívida dos governos locais, que deve estar ao redor de 20% do PIB. Ou seja, estamos falando de uma dívida pública acima de 100% como proporção do PIB".
Para Tanzi, a política do Federal Reserve (o banco central americano), que alia expansão monetária e juros reais negativos, também é fonte de preocupação. Em sua avaliação, sem a operação do Fed, o déficit fiscal americano seria muito maior porque os juros baixíssimos barateiam o serviço da dívida. "Não me parece uma situação muito confortável".
A vantagem dos Estados Unidos, afirma Tanzi, é que o país ainda é visto como uma ilha de segurança, o que permite que o governo se financie a taxas muito baixas. "A taxa de juros americana está no nível mais baixo em 200 anos. É um absurdo acreditar que isso pode continuar indefinidamente", diz. Para Tanzi, a hora da verdade chegará quando a inflação e os juros retomarem a trajetória de alta, o que vai custar muito ao Fed.
"Tudo isso pode se manter por mais alguns meses, mas, cedo ou tarde, deve levar a grandes dificuldades e necessidade de corte de gastos". Usando uma de suas analogias prediletas, Tanzi diz que a ideia de que se pode criar crescimento gastando mais é semelhante ao artifício de oferecer esteroides para um atleta. "Isso pode fazer com que ele corra mais rápido hoje, mas se continuar com o uso sua performance vai piorar".
Já o caso europeu, diz Tanzi, é mais urgente, especialmente ao se olhar para países como Itália, Espanha, Grécia, Portugal e Irlanda. Como exemplo, recorre a seu país natal, a Itália. Ele lembra que o ex-primeiro ministro Mario Monti, sucedido Enrico Letta, tentou fazer ajustes, mas a população não entendeu. "As pessoas realmente acreditavam que o que Monti estava tentando fazer não era necessário e isso é perigoso", diz. "Se voltarmos aos políticos que acham que há almoço grátis em algum lugar, que podemos facilmente voltar a ter crescimento simplesmente gastando mais, teremos problemas". Tanzi avalia que alguns acreditam que realmente é possível escolher entre austeridade e crescimento, o que é não é verdade. "Se existisse essa possibilidade não seria óbvio qual deles escolher?".
Para Tanzi, nem mesmo os questionamentos recentes feitos aos estudos conduzidos pelos seus colegas de Harvard Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart - críticas que são usadas por economistas menos ortodoxos justamente para apontar eventuais ineficiências no receituário mais liberal -, enfraquecem o argumento de que a saída é a austeridade. "Rogoff e Reinhart partiram de uma suposição tola, de que os problemas começam quando a dívida [como proporção do PIB] chega a 90%. Os problemas podem começar muito antes disso", diz, ao lembrar que a Argentina, quando quebrou em 2001, mantinha uma dívida de 40% em relação ao PIB. Enquanto, no Japão, essa relação está ao redor de 250% e o país - "uma bomba prestes a explodir", diz Tanzi, alimentada por lobbies que indicam a necessidade de gastar mais e mais -, está aí. Para o economista, um artigo escrito por ele no início de 2000 joga luz à questão: o documento indica que o crescimento diminui quando a dívida pública aumenta, sem que seja preciso estabelecer um nível para isso.
Longe de se considerar um economista ultra-conservador, Tanzi discorda dos que creditam a origem dos desequilíbrios ao estado de bem-estar social (welfare state). Os problemas, diz ele, estão nas distorções do modelo. Como exemplo, ele lembra que o conceito de invalidez, antes bastante circunscrito, se alargou de modo temerário. "Em países como a Holanda ou Itália é possível se aposentar por invalidez a partir de uma dor nas costas", diz. O que só mostra, afirma, que não é preciso abolir o "welfare state", como defendia o economista conservador Milton Friedman. "Precisamos voltar às intenções iniciais, eliminando a bagagem excessiva que temos acumulado nos últimos anos".
Voltando a falar de Brasil, Tanzi avalia ser possível que o país cresça a taxas superiores aos 3% esperados pelo FMI para 2013, mas diz que, para isso, vai ser preciso repensar o papel do Estado. "Novamente, não sou contra governos, sou a favor de governos que funcionem e funcionem bem", diz. "Já os que não funcionam, recomendo que comecem a fazer reformas". Tanzi veio ao Brasil pela primeira vez em 1965. Acompanhou de perto, dentre outros acontecimentos, o período militar e de inflação nas alturas. Ele encerra a entrevista dizendo que os poucos dias que passa no país cada vez que desembarca em São Paulo ou no Rio, no entanto, não permitem captar as mudanças locais. Com exceção dos carros nas ruas. "Muitos", em sua avaliação.
Veículo: Valor Econômico