O presidente da Nestlé no Brasil, Ivan Zurita, viajou à matriz, na Suíça, com a proposta de crescer respeitáveis 6% em 2010 -- mas saiu de lá com uma meta quase duas vezes maior
Ao embarcar para a Suíça em outubro, Ivan Zurita, presidente da Nestlé no Brasil, sabia que teria pela frente uma carregada agenda de reuniões com os acionistas daquela que é a maior empresa de alimentos do mundo. As expectativas eram enormes. Historicamente, o mercado europeu, berço da Nestlé, sustentou muito do crescimento e dos lucros da companhia. Mas o cenário global mudou -- e pouca gente acredita que esse seja um movimento passageiro. Neste ano, as vendas da Nestlé. na Europa crescerão 3,5%, razoavelmente abaixo das promessas de 5%. Assim como a maioria dos executivos de grandes multinacionais, a cúpula da Nestlé percebeu que, daqui em diante, o crescimento virá de outras partes do mundo, dos chamados mercados emergentes. E, para os suíços da Nestlé, a grande promessa de expansão virá de um lugar em especial -- o Brasil.
Não é preciso ser gênio para chegar a essa conclusão. A subsidiária brasileira alcançou o posto de segunda maior operação mundial da companhia, à frente da americana. Europa e Estados Unidos são mercados maduros, nos quais convencer um consumidor a comprar mais um chocolate ou um novo tipo de iogurte torna-se tarefa cada vez mais complexa e cara. No Brasil, a emergência de uma nova classe média torna a demanda gigantesca. Foram essas evidências que fizeram Zurita chegar a Vevey com uma meta para os negócios em 2010 e sair de lá, dias depois, com outra -- bem mais agressiva. Sua proposta inicial era elevar em 6% o faturamento da subsidiária, atualmente em 14 bilhões de reais. Isso sem a ajuda de fusões ou aquisições de concorrentes. O objetivo era considerado ousado por alguns executivos brasileiros. Hoje, o desafio de Zurita e seu grupo é crescer organicamente 10% a partir do próximo ano. (Para o resto do mundo, as aquisições aparentemente continuam a ser uma alternativa. Até o fechamento desta edição, as maiores empresas de alimentos do mundo se mantinham na disputa pela compra da inglesa Cadbury. A americana Kraft Foods fez uma oferta de 16 bilhões de dólares. A italiana Ferrero manifestou seu interesse. E, segundo o Wall Street Journal, a Nestlé apresentou-se como candidata à aquisição, embora não tenha feito nenhuma oferta oficial até o momento.) "Não há dúvida de que a nova meta de crescimento para o Brasil é bastante ousada", diz Zurita. "Mas está longe de ser inatingível. Vamos trabalhar dobrado."
Trabalhar dobrado significa colocar em execução o maior plano de expansão da Nestlé brasileira desde 2001, data da compra da fabricante de chocolates Garoto. Zurita elegeu duas áreas prioritárias para seu crescimento: o mercado da classe C, segmento no qual a Nestlé está presente há cerca de quatro anos, e os consumidores com mais de 60 anos de idade, terreno ainda inexplorado pela companhia. Zurita incumbiu cada uma das 17 unidades de negócios a criar pelo menos uma nova linha de produtos para esses dois públicos em 2010. A ideia é lançar cerca de 30 novidades nos próximos 12 meses, quase duas vezes mais a média anual de lançamentos da Nestlé no Brasil. "Vamos desenvolver essas inovações aqui. Elas serão os motores da expansão", diz Zurita. Ao mesmo tempo que tentam criar linhas e penetrar em novos mercados, os executivos da empresa têm o desafio de expandir negócios já existentes. A marca de sorvetes Garoto deve ser levada para a Região Nordeste. Duas cafeterias Nespresso, grife para consumidores de alta renda, serão inauguradas no Rio de Janeiro e em Campinas. E o número de vendedoras porta a porta -- estratégia criada para atingir a população da classe C por meio de um canal de distribuição alternativo -- passará de 8 000 para 10 000. Pelos cálculos de Zurita, apenas essa última medida deverá render pelo menos 1 bilhão de reais em receitas extras para a Nestlé em 2010. "Vamos aproveitar a força de nossa marca", diz ele. "Há inúmeros mercados a ser desbravados."
Novas linhas, novos mercados, mais vendedoras. Mais 1 bilhão de faturamento. Tudo isso parece desejável. Mas Zurita sabe que, para bater consistentemente a meta de crescer pelo menos 10% ao ano, ele precisará de um negócio de grandes escalas. Diante disso, sua maior aposta está num mercado em que a Nestlé tem pouca -- ou nenhuma -- tradição no Brasil: o de leite longa vida. A empresa entrou nesse mercado em março deste ano com o lançamento de dois produtos das marcas Ninho e Molico, até então vendidos sob a forma de leite em pó. Inicialmente, as vendas ficaram concentradas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, devido à baixa capacidade de produção da Nestlé, de 48 000 litros por ano. Mas a aquisição da maior fábrica da Parmalat no país, concluída no dia 20 de novembro, deverá mudar a amplitude da operação. Localizada no município de Carazinho, no Rio Grande do Sul, a fábrica tem capacidade de produzir 500 milhões de litros de leite por ano, quase 10% do total consumido no Brasil. Outra parte da produção deverá vir de uma nova fábrica, em Araraquara, no interior de São Paulo, capaz de produzir mais de 100 milhões de litros de leite por ano. O investimento nas duas fábricas será de 250 milhões de reais. "A derrocada da Parmalat abriu espaço para que possamos crescer nesse mercado", diz Zurita. "Queremos vender produtos de maior valor agregado, com margens maiores." Nessa hora, as tradicionais marcas da Nestlé. podem ajudar. Os leites Ninho e Molico são vendidos a preços em média 30% maiores que os dos concorrentes.
A pressão para que as operações brasileiras -- e em outros países emergentes -- compensem a desaceleração dos mercados desenvolvidos tem se tornado comum entre as companhias multinacionais. Assim como Zurita, presidentes de empresas como Danone, Unilever, Nextel e Pepsico também encontram-se às voltas com metas de crescimento mais elevadas -- em alguns casos, até duas vezes maiores que o inicialmente previsto. A cobrança, normalmente, tem vindo acompanhada de mais autonomia na execução das estratégias. A busca é por resultados mais rápidos, algo impossível se todas as decisões confluírem para as matrizes. "Os executivos à frente das subsidiárias brasileiras, antes relegados a segundo plano, ganharam mais status perante os acionistas das multinacionais", afirma Ricardo Neves, responsável pela área de varejo e bens de consumo da consultoria PricewaterhouseCoopers. "O Brasil é atualmente um mercado primordial. É preciso agir com rapidez." Foi esse grau de confiança -- ou de relevância --, por exemplo, que permitiu que Sérgio Chaia, presidente da operadora de telecomunicações Nextel no país, antecipasse em quatro meses a entrada da empresa no Nordeste, em julho deste ano. (A manobra garantiu à Nextel um crescimento de 40% em 2009, ano de quase imobilismo no restante das operações.) Da mesma forma, o holandês Kees Kruythoff, presidente da Unilever brasileira, recebeu o sinal da matriz para reorganizar o alto escalão da companhia no início de 2010, uma antiga reivindicação que sempre esbarrou na burocracia da empresa. "A crise aumentou os deveres dos presidentes no Brasil, mas, ao mesmo tempo, ampliou seus direitos", diz Neves, da PricewaterhouseCoopers.
A operação brasileira da Nestlé já vinha passando por um processo de reestruturação bem antes da viagem de Zurita à Suíça -- o que deve facilitar seu trabalho daqui para a frente. Em 2004, ele unificou as equipes de vendas nos segmentos de chocolates, biscoitos, cereais, leite condensado e café, diminuindo os custos dessa área em até 40%. Zurita também desativou três das quatro fábricas de biscoitos da empresa e investiu no lançamento de dois novos produtos específicos para o mercado nordestino, o que mais cresce no país. Tais medidas, no entanto, estão longe de garantir o sucesso de sua atual estratégia. Apesar do crescimento robusto apresentado pela subsidiária de 2003 para cá, a Nestlé perdeu a liderança em segmentos como biscoitos e iogurtes para os concorrentes M. Dias Branco e Danone, respectivamente. Com os franceses da Danone, Zurita travou uma luta inglória. Para concorrer com o iogurte funcional Activia, da Danone, a Nestlé lançou a linha Nesvita em 2006. Neste ano, diante dos resultados insatisfatórios, a linha foi retirada do mercado. Os preços mais altos e um baixíssimo apelo de marca fizeram com que o Nesvita nunca ultrapassasse os 3% de participação de mercado. A Danone, por outro lado, detém 66% de participação. "Vamos relançar o Nesvita com a marca Molico", diz Zurita. "Nossa batalha está apenas começando."
Veículo: Revista Exame